sábado, 6 de dezembro de 2014

Sou nascido em Londrina

O encardido dos pés, o "r" retroflexo e a lembrança de suas ruas me acompanham. Ela me é a medida do mundo. Onde quer que eu esteja, sou o mesmo menino subindo a avenida Celso Garcia Cid, passando pela catedral até alcançar o calçadão. Todos os caminhos são aquele caminho. Todo calçadão é a avenida Paraná e todas as catedrais são aquela catedral. A avermelhada terra, avançando por sobre os muros, dizia, ternamente, aos que chegavam, que ali a vida haveria de ser menos rude. Carroças, atravessando a rua estreita, atravessavam séculos sobre o lombo cansado da égua velha. Flores nos canteiros, armazéns e terrenos baldios, faziam com que o tempo desse voltas inúteis e perdesse a pressa costumeira.
Cachorros magros passeavam solenemente pela cidade. Almindas, Clarisses e Irenes, bem acomodadas sobre os cotovelos apoiados nas janelas, faziam companhia aos passos dos Josés, Inácios e Felícios, que seguiam pela rua com um fim qualquer. A cidade parecia estar descansando. Um descanso eterno e merecido, com sua apoteose aos Domingos. Domingos mansos, bestas e adoráveis, que sequer sabiam em que mês ou ano estavam. Foda-se as convenções. As ruas e alamedas deitavam-se mansamente por sobre a terra vermelha, como um batom borrado na boca de uma menina. As alamedas, ainda que sujas, são amistosas e perfumadas. A temperatura é controlada por um anjo tropical. 700 mil habitantes, tamanho abraçável, espalhafatosamente feminina, bela e interiorana. Doce indolência no falar e no agir. Gestos que se demoram e parecem percorrer trajetórias mais compridas do que as necessárias. Pernas educadas. Cotovelos discretos. Joelhos honestos. Se nela pulsava a curiosidade pelo segredo da caixa ou pelo gosto da maçã, não sei. Sei que sorria e parecia completar-se. Se bem que, e só agora vejo, ou mesmo invento, havia anseios de metrópole nos trejeitos da pequena. Talvez a ela fossem estreitas as alamedas e parnasiano demais o clima. Ali, o céu é o mesmo visto em outras partes. Os mesmos dotes culinários. A mesma quantidade de sal levada ao arroz, a mesma porção de açúcar destinada ao café, os mesmos desenhos na louça, as mesmas fatias desenhadas no bolo e os mesmos modos à hora da mesa. Tudo como em todo lugar. Porém, eu estava vivo e estava ali. Aquilo era eu. E só aquilo era eu. Havia um pouco de mim no encardido daqueles muros. A terra vermelha daquele lugar era meu sangue espalhado por toda parte. A estreiteza daquelas ruas era o canteiro em que eu vicejava. Rimávamos de modo a ouvir-se de longe. Versos livres, sem métrica, rebuscamento, ideais forjados ou cronologia que pudessem confiná-los a alguma escola ou estética conhecidas. Rimávamos porque era calor, ou porque eu era menino, ou porque chovia, ou porque a tarde era azul. Talvez fosse o encanto que a aurora traduz, a mentira em seu estágio inicial ou a idéia do todo tomada pela parte, mas aquelas eram tardes de um azul que adoçava a boca até o enjôo. Habitávamos os mesmos sonhos, ruminávamos o mesmo tédio, víamos as mesmas meninas no caminho à escola. Éramos profundos conhecedores um do outro. Se sabia eu o caminho de seu centro, ela muito bem sabia o caminho para o meu interior. Seus atalhos e meus passos, suas belezas e meus cacoetes. As mesmas caretas inventadas, os mesmos termos em horas mesmas, o mesmo olfato. Tínhamos um acordo íntimo. Secretos a nós mesmos, todavia. Como aquele entre a mão direita e a esquerda.
Éramos os habitantes do mundo antes mesmo dele chamar-se mundo. Antes mesmo da divisão das águas, víamos o Espírito de Deus pairando à nossa imagem e semelhança. Tinha eu o mais belo dos defeitos: dezesseis anos! Sugava da manhã o que ela sequer supunha existir. Amava o cheiro de alho que fugia da panela à hora do arroz e de papel novo dos livros dispostos educadamente nas prateleiras das livrarias.
Ao sol do meio-dia, as mãos unidas pelas certezas juvenis, o riso fácil por supormo-nos imortais, recebíamos a vida através do cheiro daqueles dias. Por certo que chorávamos, atormentados por Cassandra e seu complexo, mas era isso parte do que era bom. Sentíamo-nos fortes por achar graça onde especulavam dor. Eram tardes amistosas. Uma corrida pelo puro prazer de perceber as pernas rijas, o fôlego novo, os olhos atentos e o coração rítmico. A rua Pernambuco não conheceu passos mais felizes que os meus. Tampouco a avenida Celso Garcia Cid, as ruas Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e Sergipe. As avenidas Higienópolis, Maringá e Jk, as ruas Hugo Cabral e Minas Gerais, jamais haviam sentido passos que lembrassem beijos. Londrina cresceu, eu envelheci e Lu se casou com um cara que não tinha entrado na história. A quadrilha me roubou os sonhos, me pôs um sorriso amarelo na cara, desculpas impossíveis nos bolsos e frases sem sentido na boca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário