sábado, 6 de dezembro de 2014

Neguinho

“... neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, GPS e acha que é feliz...” Eis um trecho da música “Neguinho”, de Caetano Veloso, cantada por Gal Costa, no Cd “Recanto Escuro”, lançado ano passado.
Eu já tinha perdido as esperanças em Caetano até ouvir esse seu último trabalho. Assim como já tinha perdido as esperanças nas inovações tecnológicas até conhecer o GPS. Por conta do trabalho de minha mulher, ela teve que adquirir um aparelho desses. Minha relação com a tecnologia sempre foi tardia. O primeiro computador? Eu tinha 23 anos (hoje tenho 36). Mp3? Há 3 anos. O primeiro Notebook? Há um ano. Iphone? Ainda não cheguei lá.
Na verdade, esses meus 18 anos em Curitiba já me deram uma grande autonomia para transitar pela cidade toda sem o auxílio de um GPS. Mas o uso que eu faço do aparelho é outro. A voz aveludada que vem com a marca do aparelho escolhido por minha mulher me é uma companhia no trânsito. Mesmo nos caminhos mais conhecidos, lá vou eu digitar o endereço para dirigir acompanhado. “Prepare-se para fazer uma curva levemente à esquerda a 300 metros”. Lá vou eu obedecer aquilo que, hoje, devido à familiaridade, já parece ser a voz da minha consciência. E essa companhia tecnológica tem suas vantagens. Se eu erro o trajeto, por exemplo, nada de bronca. Apenas uma singela e complacente frase: “recalculando a rota”. Mas, como a engenhoca é uma criação humana, não haveria como não trazer resquícios de nossa personalidade. Por vezes, o aparelho lembra minha mulher. “Você está acima do limite de velocidade”. Dessa vez, a voz não tem candura ou complacência alguma. É quase a voz de uma ordem policial. Atônito, desacelero logo. Já minha mulher (embora ela tenha pedido para não contar) tem uma reação diferente. Dia desses, eu a surpreendi discutindo com o aparelho. “Eu vou é reto. E outra coisa, o limite de velocidade nessa rua é 60, e eu estou a 50 quilômetros por hora, ouviu?” disse minha mulher, enraivecida. Quando a questionei sobre a possibilidade desse ato, conversar com um objeto inanimado que nunca irá servir-lhe de interlocutor, ser um sintoma de uma patologia, minha mulher veio com esta: “Já estou acostumada. É bem parecido quando eu falo com você enquanto você está assistindo televisão. E ainda com uma vantagem. O Gps não me responde de forma ríspida se eu exagero no tom”.
O aparelho traz três opções de voz, duas femininas e uma masculina. A primeira, eu usei somente uma vez. Ela me causa arrepios. Me lembra uma antiga professora, a Dona Niúra. Quando eu executo uma manobra diferente da ordem dada, eu antevejo, e pareço ouvir de fato, a repreensão. “Entre à esquerda na próxima rua”. Continuo reto. Pareço ouvir a professora da infância: “mas que menino teimoso. Você não me ouviu dizer à esquerda? Estou falando grego?”. A voz masculina me parece um locutor de rádio FM. “Entre à direita. E vamos juntos até chegar o destino, num oferecimento da funerária ...” Não dá. Como vou conseguir dirigir ouvindo uma espécie de filial da rádio Caiobá FM?
O aparelho tem, também, algo de místico, de transcendental. É quase religioso. “Eu o guiarei até o seu destino”. Quase profético. Dia desses, digitei: “qual será o meu destino”. Ao que a máquinas respondeu: “Jamais saberás!”

 “... neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, GPS e acha que é feliz...”

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