Nheengatu
Nunca
gostei de lugares comuns ou frases feitas. Hoje, meu ódio arrefeceu 50%. “De
médico e louco, todo mundo tem um pouco”. Conhecem essa? Pois bem. Na última
segunda-feira (16) acordei com as amídalas só um pouquinho doloridas. “Tomo um
antiinflamatório e pronto” disse minha metade médico. Resultado? Na mesma
segunda-feira, lá por volta das 15 horas, estava eu com 39,5 graus de febre e
com uma amídala encostando na outra. “Vai bobão” disse, carinhosamente, minha
mulher. O resto da história é previsível. Fui ao PA. O médico me examinou e
receitou Amoxicilina, Nimesulida e Paracetamol. E cá estou, feliz com os meus
37,5 graus de febre e com a garganta doendo somente quando eu falo muito. “Cala
a boca, meu bem” diz, nova e carinhosamente, minha esposa.
Antes
de você levantar o seu dedo e sentenciar: “Mas porque, então, o ódio às frases
feitas arrefeceu se o Benedito se deu mal seguindo uma delas?”. Acontece que o
nosso representante no Senado Federal, Paulo Bauer, resolveu, pela segunda vez
consecutiva, nos últimos três anos, ratificar a segunda metade do tal dito
popular. Andou louqueando em questões relativas à educação (e olha que louqueando
é eufemismo. E bote eufemismo aí. Mais um pouco. Aí já está bom).
A
primeira lambança de Bauer foi em 2009, quando ele capitaneava a nossa
Secretaria de Estado da Educação. Incentivar a leitura? Promover novos autores?
Nada. O feito mais marcante de Paulo Bauer foi mandar recolher o livro
“Aventuras Provisórias” do catarinense Cristóvão Tezza. Entre dar ouvidos a
cinco especialistas em literatura que aprovaram o livro, ou ouvir duas carolas
puritanas, o que fez Bauer? Ouviu as corocas e mandou recolher os livros!
Round 2: também conhecido como segunda
lambança. Essa é mais recente. Aconteceu
no último dia 17. Em seu pronunciamento, e falando pela liderança do PSDB, o
senador propôs que o MEC recolhesse o livro que cita ser “aceitável” o uso
de frases sem concordância verbal. “Não podemos permitir que se ensine no Brasil
a expressão ‘nóis pega peixe’. A língua é o patrimônio de uma nação. É a
riqueza de um País. A língua portuguesa que nós devemos ensinar para as nossas
crianças deve ser do ponto de vista da gramática” disse Bauer. E
como se já não tivesse dito besteiras demais, sapecou mais esta: “As crianças precisam aprender o Português de forma
correta e original. Temos que ensinar o certo. Se tivéssemos que admitir que o
erro é a regra, não precisaríamos ter leis de trânsito. Tem que recolher os
livros e não permitir que em outro momento tal equívoco se repita” afirmou.
Ensinar o certo? Admitir o erro? Sente aí advogado
Bauer, que o professor de português Benedito irá te dar uma aula gratuita.
Primeiramente, essas seus conceitos de certo e errado são inadequados e
discriminatórios. O que você chama de erros de
português são tão somente diferenças entre variedades da língua. Esse fenômeno
é fácil de ser percebido. Ou você fala da mesma maneira em casa, no bar com os
amigos e quando vai falar com um Juiz de Direito? “Fala, Juizão, tudo certo? Dá
um bizoiada aí nos meus processo?” Agora, imagine essa conversa mantida entre
dois amigos no Bar do Gaúcho: “Caro Ditão. Na segunda-feira vindoura,
poderíamos chamar o nobre Beto Preto, o Tibira e o Canela, para, juntos, e de
maneira harmoniosa, disputarmos uma partida do velho e rude esporte bretão.
Aguardo, ansiosamente, uma resposta positiva ao meu convite”. É bem provável
que o Ditão, o Beto Preto e o Tibira pensem que você enlouqueceu.
Mas ele não ficou sozinho em seu lamentável
discurso. O lendário Casildo Maldaner o socorreu, lançando mais uma pérola, que
pode ser inserida na próxima edição de seu “Casildário”, dizendo: “A ortografia
tem de ser preservada e as normas gramaticais devem ser respeitadas,
independentemente dos diferentes sotaques regionais do país”.
O mais terrível disso tudo é que as variedades sociais da língua são reflexos, e se alimentam,
da imensa desigualdade socioeconômica da sociedade brasileira. O Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada revelou que cerca de 1% dos brasileiros mais ricos
(1,7 milhão de pessoas) detém uma renda equivalente à renda dos 50% mais pobres
(86,5 milhões). Isso se manifesta na polarização sociolingüística do Brasil,
que tem, de um lado, a linguagem das pessoas que têm acesso à escolarização e à
norma culta brasileira, e a linguagem da grande maioria de excluídos e com
pouca ou nenhuma escolarização, a norma popular. Portanto, a questão não é
lingüística, e sim social. Então, Senadores, vão trabalhar para diminuir essas
diferenças ao invés de opiniar sobre o que desconhecem.
Só mais um detalhe. Na norma popular, a
indeterminação do sujeito é feita normalmente sem a partícula se: “planta muita
mandioca no Nordeste”; ao invés de: “planta-se muita mandioca no Nordeste”.
Mas, para o Casildo: “Aipim, Mandioca, dá tudo no mesmo”.
A propósito,
“Nheengatu” significa “língua boa”, em Tupi.
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